segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

"A D...

I

É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima.
Mas é uma história e não um romance.
Há mais de dois anos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me ao Rocio para tomar o ônibus de Andaraí.
Sabe que sou o homem menos pontual que há neste mundo; entre os meus imensos defeitos e as minhas poucas qualidades, não conto a pontualidade, essa virtude dos reis e esse mau costume dos ingleses.
Entusiasta da liberdade, não posso admitir de modo algum que um homem se escravize ao seu relógio e regule as suas ações pelo movimento de uma pequena agulha de aço ou pelas oscilações de uma pêndula.
Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, não vi mais ônibus algum; o empregado a quem me dirigi respondeu:
— Partiu há cinco minutos.
Resignei-me e esperei pelo ônibus de sete horas. Anoiteceu.
Fazia uma noite de inverno fresca e úmida; o céu estava calmo, mas sem estrelas.
A hora marcada chegou o ônibus e apressei-me a ir tomar o meu lugar.
Procurei, como costumo, o fundo do carro, a fim de ficar livre das conversas monótonas dos recebedores, que de ordinário têm sempre uma anedota insípida a contar ou uma queixa a fazer sobre o mau estado dos caminhos.
O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar.
Sentei-me; prefiro sempre o contato da seda à vizinhança da casimira ou do pano.
O meu primeiro cuidado foi ver se conseguia descobrir o rosto e as formas que se escondiam nessas nuvens de seda e de rendas.
Era impossível.
Além de a noite estar escura, um maldito véu que caía de um chapeuzinho de palha não me deixava a menor esperança.
Resignei-me e assentei que o melhor era cuidar de outra coisa.
Já o meu pensamento tinha-se lançado a galope pelo mundo da fantasia, quando de repente fui obrigado a voltar por uma circunstância bem simples.
Senti no meu braço o contato suave de um outro braço que me parecia macio e aveludado como uma folha de rosa.
Quis recuar, mas não tive ânimo; deixei-me ficar na mesma posição e cismei que estava sentado perto de uma mulher que me amava e que se apoiava sobre mim.
Pouco a pouco fui cedendo àquela atração irresistível e reclinando-me insensivelmente; a pressão tornou-se mais forte; senti o seu ombro tocar de leve o meu peito; e a minha mão impaciente encontrou uma mãozinha delicada e mimosa, que se deixou apertar a medo.
Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha ilusão e por este contato voluptuoso, esqueci-me, a ponto que, sem saber o que fazia, inclinei a cabeça e colei os meus lábios ardentes nesse ombro, que estremecia de emoção.
Ela soltou um grito, que foi tomado naturalmente como susto causado pelos solavancos do ônibus, e refugiou-se no canto.
Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para olhar pela portinhola do carro, e, aproximando-me dela, disse-lhe quase ao ouvido:
— Perdão!
Não respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto.
Tomei uma resolução heróica.
— Vou descer, não a incomodarei mais.
Ditas estas palavras rapidamente, de modo que só ela ouvisse, inclinei-me para mandar parar.
Mas senti outra vez a sua mãozinha, que apertava docemente a minha, como para impedir-me de sair.
Está entendido que não resisti e que me deixei ficar; ela conservava-se sempre longe de mim, mas tinha-me abandonado a mão, que eu beijava respeitosamente.
De repente veio-me uma idéia. Se fosse feia! se fosse velha! se fosse uma e outra coisa!
Fiquei frio e comecei a refletir.
Esta mulher, que sem me conhecer me permitia o que só se permite ao homem que se ama, não podia deixar com efeito de ser feia e muito feia.
Não lhe sendo fácil achar um namorado de dia, ao menos agarrava-se a este, que de noite e às cegas lhe proporcionara o acaso.
É verdade que essa mão delicada, essa espádua aveludada... Ilusão! Era a disposição em que eu estava!
A imaginação é capaz de maiores esforços ainda.
Nesta marcha, o meu espirito em alguns instantes tinha chegado a uma convicção inabalável sobre a fealdade de minha vizinha.
Para adquirir a certeza renovei o exame que tentara a princípio: porém, ainda desta vez, foi baldado; estava tão bem envolvida no seu mantelete e no seu véu, que nem um traço do rosto traía o seu incógnito.
Mais uma prova! Uma mulher bonita deixa-se admirar e não se esconde como uma pérola dentro da sua ostra.
Decididamente era feia, enormemente feia!
Nisto ela fez um movimento, entreabrindo o seu mantelete, e um bafejo suave de aroma de sândalo exalou-se.
Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se infiltrou em minha alma como um eflúvio celeste.
Não se admire, minha prima; tenho uma teoria a respeito dos perfumes.
A mulher é uma flor que se estuda, como a flor do campo, pelas suas cores, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu perfume.
Dada a cor predileta de uma mulher desconhecida, o seu modo de trajar e o seu perfume favorito, vou descobrir com a mesma exatidão de um problema algébrico se ela é bonita ou feia.
De todos estes indícios, porém, o mais seguro é o perfume; e isto por um segredo da natureza, por uma lei misteriosa da criação, que não sei explicar.
Por que é que Deus deu o aroma mais delicado à rosa, ao heliotrópio, à violeta, ao jasmim, e não a essas flores sem graça e sem beleza, que só servem para realçar as suas irmãs?
É decerto por esta mesma razão que Deus só dá à mulher linda esse tato delicado e sutil, esse gosto apurado, que sabe distinguir o aroma mais perfeito...
Já vê, minha prima, porque esse odor de sândalo foi para mim como uma revelação.
Só uma mulher distinta, uma mulher de sentimento, sabe compreender toda a poesia desse perfume oriental, desse hatchiss do olfato, que nos embala nos sonhos brilhantes das Mil e uma Noites, que nos fala da Índia, da China, da Pérsia, dos esplendores da Ásia e dos mistérios do berço do sol.
O sândalo é o perfume das odaliscas de Stambul e das huris do profeta; como as borboletas que se alimentam de mel, a mulher do Oriente vive com as gotas dessa essência divina.
Seu berço é de sândalo; seus colares, suas pulseiras, o seu leque, são de sândalo; e, quando a morte vem quebrar o fio dessa existência feliz, é ainda em uma urna de sândalo que o amor guarda as suas cinzas queridas.
Tudo isto me passou pelo pensamento como um sonho, enquanto eu aspirava ardentemente essa exalação fascinadora, que foi a pouco e pouco desvanecendo-se.
Era bela!
Tinha toda a certeza; desta vez era uma convicção profunda e inabalável.
Com efeito, uma mulher de distinção, uma mulher de alma elevada, se fosse feia, não dava sua mão a beijar a um homem que podia repeli-la quando a conhecesse; não se expunha ao escárnio e ao desprezo.
Era bela!
Mas não a podia ver, por mais esforços que fizesse.
O ônibus parou; uma outra senhora ergueu-se e saiu.
Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma sombra passar diante de meus olhos no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando dei acordo de mim, o carro rodava e eu tinha perdido a minha visão.
Ressoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada quase imperceptivelmente:
— Non ti scordar di me! ...
Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda; andei como um louco até nove horas da noite.
Nada!"


Trecho do livro Cinco Minutos, de José de Alencar

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